Acesso á justiça: uma releitura da obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth a partir do Brasil 40 anos depois - Núm. 41, Enero 2015 - Revista del Instituto Colombiano de Derecho Procesal - Libros y Revistas - VLEX 631567687

Acesso á justiça: uma releitura da obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth a partir do Brasil 40 anos depois

AutorDr. Aluisio Gonçalves De Castro Mendes, Dra. Larissa Clare Pochmann Da Silva
Páginas47-85

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Introducao

O acesso a Justica é uma preocupacáo constante ao longo da historia, mas a obra de Mauro Cappelletti, em colaboracáo com Bryant Garth e NicolóTrocker, publicada em 4 (quatro) volumes, em anos distintos, a partir de 1974/1975, foi um marco para o direito processual, ao realizar, em conjunto com estudiosos de diversos países, uma abordagem nova sobre o acesso a Justica na sociedade contemporánea. A pesquisa, denominada Projeto Florenca, detectou diversas barreiras para a efetividade do acesso a Justica.

A partir dessas constatacóes, foram sistematizadas tres ondas renovatórias de acesso a Justica, que emergiram em sequéncia cronológica. A primeira onda renovatória envolve a assisténcia jurídica; a segunda envolve a representacáo jurídica para os interesses difusos, especialmente ñas áreas de protecáo ambiental e de direito do consumidor; e a terceira, denominada "enfoque de acesso á justica", reflete a tentativa de atacar as barreiras ao acesso á Justica.

Quarenta anos após o inicio da divulgacáo das pesquisas, realiza-se uma releitura dessas ondas renovatórias, tendo o Brasil como foco, mas tentando-se, apesar da dificuldade de pesquisas empíricas que adotem os mesmos criterios1, comparar ao cenário internacional. Para isso, inicia-se com a abordagem da importancia da obra de Mauro Cappelletti para o direito processual, seguindo-se com a abordagem de cada uma das tres ondas renovatórias.

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1. A relevancia da obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth no contexto do acesso a justica

O acesso a Justica nao é uma preocupacáo recente ao longo da historia da humanidade2 e significa tanto o sistema onde os cidadáos buscam assegurar seus direitos como onde submetem seus conflitos ao Estado3, mas sofreu uma mudanca no estudo e no ensino do direito processual civil. A concepcáo tradicional sobre o tema estava atrelada aos direitos individuáis, limitada ao direito formal de ajuizar uma acáo e de apresentar defesa quando da condicáo de réu. O acesso a Justica seria um direito natural e, portanto, nao demandaria uma atuacáo estatal para assegurá-lo, permanecendo o Estado passivo em relacáo a problemas como a aptidáo de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendé-los adequadamente4.

Nesse contexto, nao havia uma preocupacáo com as custas do litigio, especialmente em relacáo aqueles que nao poderiam arcar com ele, e nem mesmo em arcar com os custos de um corpo de profissionais para atuar em juízo. O estudo era formalista e a preocupacáo estava centrada na teoria do procedimento, sem verificar seus efeitos na prática forense. Dessa forma, as preocupacóes eram nitidamente afastadas da realidade da maior parte da populacáo, que poderia até ter direitos formalmente reconhecidos, mas nao o acesso a uma justica substantiva5.

Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, o acesso a Justica foi reconhecido como um direito, responsável por proteger os direitos que já estavam legalmente assegurados6. O acesso a Justica passa, entáo, a ser reconhecido como requisito fundamental para assegurar - e nao apenas proclamar

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- direitos7. Porém, nao havia urna preocupado com sua efetividade. Era preciso reconhecer que a técnica processual serve a funcóes sociais; que os tribunais nao sao a única forma de solucionar conflitos e que a regulamentacáo processual, inclusive a criacáo ou o encorajamento de alternativas ao sistema judiciário, tem efeitos sobre como opera a lei substantiva8.

Nessa perspectiva, a obra de Mauro Cappelletti, em colaboracáo com Bryant Garth e NicolóTrocker, publicada em 4 (quatro) volumes, em anos distintos, a partir de 1974/1975,foi de extrema importancia para a estruturacáo do tema, revelando-se um verdadeiro marco para o estudo do direito processual. Apesar da extensáo e da relevancia em sua íntegra da pesquisa, apenas o último volume, assinado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que representou a conclusáo dos estudos do denominado Projeto Florenca -na verdade, essa denominacáo representou a reuniáo de um conjunto de projetos de pesquisa centralizado em Florenca9-, foi traduzido para o portugués, sendo divulgado no Brasil através de traducáo realizada pela hoje Ministra aposentada do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie Northfleet10.

O objetivo do estudo era delinear o surgimento e desenvolvimento de urna abordagem nova e compreensiva do acesso a Justica na sociedade contemporánea, baseada na ruptura com a crenca tradicional da confiabilidade das instituicóes jurídicas e no desejo de tornar efetivo o direito de todos os cidadáos11, especialmente porque, na época de desenvolvimento do projeto, eram frequentemente denegados o acesso a Justica no reconhecimento de direitos relacionados ao meio ambiente e dos consumidores12. O projeto de pesquisa resultou em um relatório comparativo sobre o acesso a Justica, com escala mundial, preparado em Florenca, na Italia, a partir do outono de 1973, envolvendo 100 experts de 27 países13.

As conclusóes do projeto representaram urna importante transformacáo na compreensáo do acesso a Justica, sendo detectadas algumas barreiras para

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sua efetividade. A primeira barreira identificada foi o custo, ai incluindo tanto os custos para movimentar o aparato judiciário como os custos de arcar com os honorarios de um advogado. A mais importante despesa de um litigante consistia, na época da pesquisa, nos honorarios advocatícios: os custos de um advogado, no Canadá e nos Estados Unidosvariavam de 25 a 300 dólares a hora14.

A regra de quem perde ressarce as custas, que prevalece na maioria dos países, também foi capaz de inibir muitas demandas, de cidadáos receosos com o resultado do julgamento de suas causas. Sem a certeza de serem vencedores, os autores acabavam inibidos de irem ao Judiciário por nao terem condicóes de arcar com os custos da parte contraria15. Por outro lado, o sistema americano, que nao possuía a previsáo do perdedor arcar com as custas, também nao representaria, pelo menos em tese, urna vantagem, pois, caso houvesse éxito, nao haveria o ressarcimento das custas pagas.

Ainda em relacáo aos custos, as causas mais afetadas eram as pequeñas demandas: muitas vezes, o beneficio económico com a demanda seria menor do que seus custos, o que poderia desincentivar a busca pela reparacáo de pequeñas lesóes. O causador do daño sabe, de antemáo, que nem todos os ofendidos ingressaráo em juízo e, mais ainda, que nem todos que ingressarem em juízo sairáo vencedores ao final da demanda, seja por faltarem a audiencia, seja por dificuldade na producáo da prova, seja pela contratacáo de um advogado pouco expedente16. Os dados reunidos pelo Projeto Florenca indicam que a relacáo entre os custos a serem enfrentados na acáo cresce na medida em que se reduz o valor da causa. Na Alemanha, por exemplo, os custos de urna acáo de US$ 100 á época do projeto, no sistema judiciário, estava estimada em US$ 150, enquanto os custos de urna causa de US$ 5.000 estaría estimado em US$4.20017.

Além disso, o tempo também foi considerado um problema para o acesso á Justica. Aguardar, em media, 3 (tres) anos por urna resposta jurisdicional poderia ameacar o próprio direito pleiteado, que chegaria, em alguns casos, até mesmo a perecer na espera de apreciacáo judicial. Ainda, o tempo seria capaz de aumentar o custo para as pártese pressiona os económicamente os mais

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fracos a abandonarem suas causas ou a aceitarem acordos em valores muito inferiores ao que teriam direito, apenas para terem uma solucáo o seu pleito. Para um acesso a Justica eficaz, era preciso uma resposta jurisdicional célere18.

Haveria, ainda, uma desigualdade em relacáo ao cidadáo que, em virtude de determinada questáo, precisa acessar o Poder Judiciário e os litigantes habituáis. A litigáncia habitual, nesse momento, já era um problema grave e que estava sendo revisitado, pois, como os próprios autores creditam, a distincáo entre litigantes habituáis (repeatplayers) e os litigantes eventuais (oneshotters) foi feito pelo norte-americano Marc Galanter. Alguns cidadáos gozam de uma serie de vantagens estratégicas, por exemplo: os litigantes habituáis teriam mais experiencia com o litigio em juízo, estariam económicamente melhor preparados para o litigio e seriam detentores de mais informacóes sobre a real proporcáo dos danos causados19. Os advogados dos litigantes habituáis costumam ser especializados na defesa do cliente e realizam estudos estratégicos sobre as chances do argumento ser acolhido ou nao, com previa experiencia até mesmo sobre o patamar das condenacóes para barganhar em uma proposta de acordó20, além de já serem mais conhecidos nos fóruns, o que pode permitir que sejam tratados com maior atencáo e maior benevolencia21. Enquanto isso, litigantes nao habituáis poderiam ter dificuldade de informacáo para reconhecerem que possuem direito, para buscarem o Poder Judiciário, além de nao possuírem informacáo sobre como ajuizar uma demanda. O advogado contratado geralmente nao é especializado, mas apenas apto a defender qualquer tipo de demanda22. O Projeto Florenca, através de uma pesquisa realizada na provincia de Quebec, no Canadá, constatou que 11% dos entrevistados disseram que jamáis iriam a um advogado23.

Mais uma barreira identificada foi a legitimidade para a protecáo dos direitos difusos, especialmente a legitimidade para a sua tutela, e a falta de informacáo sobre a sua tutela ou, simplesmente, ser capaz de desenvolver uma boa estrategia para o litigio24. O processo nao estaria...

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