Dever de Memória e a construção da História Viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do Direito à Memória e à Verdade - Justicia, estados de excepción y memoria - Libros y Revistas - VLEX 341609110

Dever de Memória e a construção da História Viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do Direito à Memória e à Verdade

AutorJosé Carlos Moreira da Silva Filbo
Cargo del AutorDoutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Páginas133-179
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Dever de Memória e a construção da História Viva: a atuação
da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do Direito à
Memória e à Verdade
José Carlos Moreira da Silva Filho*
1. Introdução
O Direito à Memória e à Verdade é um direito ainda pendente de concreti-
zação no Brasil. Muitas indagações e obscuridades cercam os episódios trau-
máticos e violentos que se alojam na história do país, uma história cerceada por
silêncios impostos e por narrativas fechadas e lineares. A constatação torna-se
palpável em relação à ditadura militar brasileira, instaurada e desenvolvida
entre os anos de 1964 e 1985.
Isto explica porque, no Brasil, o próprio conceito, especialmente no plano
jurídico-científico, ainda não foi objeto de maiores estudos e pesquisas. O im-
pulso que sustenta a reivindicação desse direito, e a conseqüente necessidade
do seu desenvolvimento teórico, vem da redemocratização brasileira, lastreada
pelo texto constitucional de 1988.
Este artigo pretende contribuir para a colmatação dessa lacuna conceitual,
procurando ir além da mera reflexão teórica ao analisar, mais especificamente,
o papel da Comissão de Anistia do Brasil no contexto da transição democráti-
ca ainda em curso no país. A chave de análise reside no olhar para a história e
* Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre
em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em
Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Professor do Programa de Pós-graduação em Direito e da
Graduação em Direito da UNISINOS. Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
Justicia, estados de excepción y memoria
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a verdade a partir da memória, o que possibilitará um enfoque peculiar sobre o
significado e as peculiaridades do Direito à Memória e à Verdade, desvelando
a idéia de uma história viva.
O itinerário proposto, ademais, levará a uma ressignificação da própria
palavra Anistia”, propugnando-se um entendimento que supere a idéia de um
exercício de esquecimento e abra espaço para a premência no cumprimento de
um dever de memória. Essa nova concepção de anistia, que já se encontra em
uma tradição recente, inaugurada paradigmaticamente com as Comissões de
Verdade e Reconciliação da África do Sul, espelha-se plenamente, como se ve-
rá, nas práticas institucionais conduzidas pela Comissão de Anistia do Brasil.
2. A crise da memória
O século XX é o século da memória. As guerras, os totalitarismos, os genocí-
dios, as ditaduras, os crimes contra a humanidade e os campos de concentração
impuseram uma reflexão sobre a importância da memória, emblematicamente
contida no famoso adágio adorniano de um novo imperativo categórico: o de
lembrar para não repetir jamais.1 Ao longo do século passado, e especialmente
em sua segunda metade, houve uma verdadeira profusão de obras, monumen-
tos e espaços de memória.
Paradoxalmente, porém, o apelo à memória parece, nesse fim/começo de
século, ser engolfado por uma perspectiva amnésica. É desde o iluminismo e
sua grandena razão que o apagamento dos rastros, ou a pouca importância
dada a eles, vem indicando um caminho no qual as capacidades e habilida-
des racionais suplantam as amarras tecidas pelo fio da memória e pelos laços
comunitários.2 No lugar do passado comum, ainda pulsante na memória, as
fórmulas democráticas modernas preferiram instaurar um marco zero, capaz
de purificar todas as feridas, as dores e as injustiças cometidas no passado ao
1 Eis a clássica formulação: “Hitler há impuesto a los hombres en estado de no-libertad un nuevo
imperativo categórico: orientar su pensamiento y su acción de tal modo que Auschwitz no se repita,
que no ocurra nada parecido”. T. Adorno, Dialectica negativa, trad. Alfredo Brotons Muñoz, Madrid,
Akal, 2005, p. 334.
2 Afirma Todorov que, nesse sentido, “quienes deploran la falta de consideración hacia la memoria
en las sociedades occidentales contemporáneas no van desencaminados: se trata de las únicas sociedades
que no se sirven del pasado como de un medio privilegiado de legitimación, y no otorgan un lugar de
honor a la memoria”. T. Todorov, Los abusos de la memoria, Barcelona, Paidós, 2000, p. 19.
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substituí-las pela igualdade. Rousseau, em A origem da desigualdade, afirma
que a desigualdade não é algo natural, que ela é fruto da ação humana, muitas
vezes tida como racional. Aqui há, portanto, um dado muito importante: o
reconhecimento da existência da desigualdade e a lembrança da responsa-
bilidade por ela. No Contrato Social, contudo, o que é recomendado? Que se
parta de uma espécie de marco zero. Que se refunde a sociedade substituindo
a premissa real da desigualdade pela premissa ideal da igualdade entre todos
os homens. E este tem sido o modelo de muitas teorias da justiça modernas
e contemporâneas.3
O sujeito racional moderno configura um ser desancorado, enaltece as
habilidades do cálculo e do autocontrole e pretende instaurar um ponto de
observação neutro e universal. Essa, porém, não é a única direção apontada
na modernidade. O romantismo, que surge como reação à ilustração, volta-se
ao passado, abre espaço para o expressionismo do self, lembra dos laços co-
munitários e permite a fundação da ciência histórica.4 Nem por isto, porém,
a tradição romântica consegue evitar a colonização do tema da memória
pelo racionalismo cientificista. As armadilhas racionalistas vão desde o viés
cientificista da historiografia até o diligente engendrar das nações, dos seus
mitos e das suas liturgias.
O historicismo prestou-se a reforçar uma concepção acumulativa, evolu-
tiva e continuísta do tempo, reservando um papel normativo para a memória,5
confundida em muitos momentos com a repetição fria e hipnótica de rituais
de civismo e do culto a símbolos forjados para representar um conceito de
unidade que, mais do que o reflexo de laços tradicionais e fruto de um escavar
da memória, atendia aos interesses e às conveniências da formação do ideal
nacionalista.
O século XX apresentou as conseqüências funestas da troca da memória
pelo marco zero da igualdade aliada à produção cada vez mais industrial do
3 Quem chama atenção para essa troca da injustiça pela igualdade presente nas teorias modernas da
justiça são Reyes Mate e Tzvetan Todorov. Ver: R. Mate, “Fundamentos de una filosofía de la memória”,
in: C.B. Ruiz (Org.), Justiça e memória: para uma crítica ética da violencia, São Leopoldo, Unisinos, 2009,
pp. 17-50. T. Todorov, Los abusos de la memoria…, op. cit., p. 20.
4 C. Taylor, “A importância de Herder”, in: C. Taylor, Argumentos filosóficos, São Paulo, Loyola, 2000,
pp. 93-114.
5 F. Catroga, Memória, história e historiografia, Coimbra, Quarteto, 2001, p. 32.

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