João Hélio, Pasárgada e a formação de uma nova cultura jurídica no Brasil: problemas de alteridade e de direitos fundamentais desde a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos - Núm. 109, Julio 2008 - Revista Facultad de Derecho y Ciencias Políticas - Libros y Revistas - VLEX 213648217

João Hélio, Pasárgada e a formação de uma nova cultura jurídica no Brasil: problemas de alteridade e de direitos fundamentais desde a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos

AutorGermano Schwartz
CargoDoutor em Direito
Páginas483-499

João Hélio, Pasárgada e a formação de uma nova cultura jurídica no Brasil: problemas de alteridade e de direitos fundamentais desde a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos1

João Hélio, Pasárgada y la formación de una nueva cultura jurídica en Brasil: problemas de alteridad y de derechos fundamentales desde la teoría de los sistemas sociales autopoiéticos

João Hélio, Pasargada and the Formation of a New Culture in Brazil: Problems of Alterity and Fundamental Rights from the Point of View of Autopoietic Systems

João Hélio, Pasargada et la formation d'une nouvelle culture du droit au Brésil: problèmes d'alterité et droits fondamentaux du point de vue des systèmes autopoïetiques

Germano Schwartz2

    Este artículo fue recibido el día 23 de Octubre de 2008 y aprobado por el Consejo Editorial en el Acta de Reunión Ordinaria No. 8 del 2 de diciembre de 2008.

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A morte do menino João Hélio causou repercussão social das mais severas no Brasil. O fato ocorreu no início de 2007. Na cidade do Rio de Janeiro, ponto turístico brasileiro por excelência, a criança foi vítima de um crime classificado como brutal pelos atores sociais. Segundo narrativa publicada no jornal "O Estadão3", a ação criminosa ter-se-ia desenrolado da seguinte maneira:

O crime impressionou o País. João, de 6 anos, estava no banco de trás do Corsa de sua mãe, Rosa Cristina Fernandes, junto com a irmã, Aline, de 12 anos, quando a família foi abordada num sinal de trânsito por dois rapazes, na rua João Vicente, zona norte do Rio. Eles os ameaçaram com uma arma - depois, concluiu-se que era de brinquedo. Aline deixou o carro, assim como Rosa, que tentou tirar João do cinto para ajudá-lo a sair. Mas os assaltantes arrancaram antes, e o menino ficou pendurado do lado de fora, preso ao cinto. Os bandidos rodaram por cerca de sete quilômetros e chegaram a correr em ziguezague para se livrar do corpo do menino. Vários motoristas tentaram alertá-los e pediram que eles parassem o carro, mas os bandidos ignoraram os apelos.

O crime, horrendo, fez com que a sociedade procurasse as alternativas tradicionais de resolução de conflitos, ao contrário da narrativa proporcionada por Ost4, na Bélgica. Ali os atores sociais belgas se moveram em função do aparecimento dos corpos sem vidas das meninas Julie e Melissa, desaparecidas há mais de um ano. O caso se tornou um sismo social que mereceu uma reação reflexiva dos componentes daquele país.

No entanto, no Brasil, o tema do sistema jurídico como construtor de uma conexão com o futuro5, de uma perspectiva social inovadora baseada em um evento

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relevante foi tratado com o "mais do mesmo". Proposta de mudanças legislativas tais como a implantação da redução da maioridade penal6 e a implantação da pena de morte são, atualmente, as respostas pensadas para a transformação da realidade carioca, que, sublinhe-se, reproduz-se, em outros níveis, no restante do Brasil.

Com efeito, no Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa, encontra-se o espelho de uma cultura jurídica bastante enraizada na identidade, no ethos, de todo o brasileiro. Existe um direito oficial, válido e vigente para determinado corpo social. Há, por outro lado, um direito não-oficial, também válido e vigente, porém para os excluídos, ou, em linguagem Luhmanniana, para a periferia do sistema social, local, em que as decisões do centro chegam somente de forma reflexa.

João Hélio é, no plano simbólico, uma bandeira para a camada social estratificada em um núcleo de proteção que não mais se encontra isolado do próprio sistema social. Com isso, passa-se a pensar em heteropoiese do Direito. Sistemas que não se comunicam, cada qual com sua própria racionalidade jurídica. Um aplicado para a parcela da população brasileira que usufrui do discurso jurídico e outro destinado aos outros, ou caso se queira adaptar a idéia de Jakobs, aos inimigos7.

2. Pasárgada

O tema é novo no Brasil? Desde quando se pode afirmar a existência de um direito oficial e de um direito não-oficial em terra brasilis? Para os brasileiros essa é uma realidade, algo que se convive naturalmente. Contudo, como primeiro grande estudo a respeito dessa diferenciação, pode-se citar o trabalho de Boaventura de Souza Santos8.

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Na Pasárgada9 do autor é verificada uma situação comum na sociedade brasileira. A partir de uma determinada época, no caso o início dos anos 20 do século passado, a população carente passa a ocupar áreas ilegais e ali construir suas residências que são obviamente ilegais, inclusive por violar os dispositivos pertinentes para sua construção.

Ato contínuo, os excluídos de Pasárgada possuem um cotidiano árduo. Não possuem abastecimento de água, há falta de eletricidade e muito menos pavimentação. Como essas pessoas são marginalizadas justamente por viverem às margens da oficialidade estatal, a reação da sociedade que se encontra sob o amparo do direito oficial é o de aceitar o que ali ocorre desde que esse fenômeno não se reproduza em seu próprio ambiente.

Essa atitude dos "outros" determina a ação a ser tomada pelos residentes em Pasárgada. Como não podem se socorrer do direito estatal, cuja resposta oficial seria a remoção dos habitantes de Pasárgada, eles passam a se organizar e procurar a maximização do desenvolvimento interno daquela sociedade. Estabeleceu-se, assim, uma trama bastante complexa de relações sociais. Um dos resultados é, conforme Boaventura, a percepção, a partir de certos topoi, de "lei do asfalto" em contraposição ao que se pode denominar de "lei dos morros".

A "lei do asfalto" é o direito dos "outros", a reprodução de um discurso jurídico tendente a proteger um Poder que os moradores de Pasárgada não enxergam, mas que conhecem faticamente, pois ele os exclui e os impossibilita de entrarem nos processos decisionais que os influenciam.

Por outro lado, o direito de Pasárgada possui uma racionalidade jurídica que lhes é bastante conhecido. Por intermédio de organizações de moradores, tomam-se decisões consensuais, baseadas em negociação e mediação. Os presidentes dessas associações ocupam um papel importante, reservado àqueles que possuem uma grande sabedoria acerca da sociedade em que restam incluídos.

Mesmo nos momentos de grande acirramento de disputas internas, não se discute a legitimidade da decisão tomada ou daquele que a tomou. Ela é seguida. Alguns

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elementos do direito oficial são transplantados para dentro de Pasárgada. Todavia, eles são adaptados de acordo com a internalidade específica da racionalidade jurídica daquele espaço social.

Com isso, Pasárgada progrediu com um direito paralelo à "lei do asfalto". De fato, possui, hoje, cerca de 26000 habitantes10 . Trata-se, no entanto de um lugar em que a renda per capita não chega a 100 dólares mensais e que possui a terceira maior parcela de miseráveis na cidade do Rio de Janeiro. Inclua-se aí, ainda, condições de higiene básica altamente reprováveis, como, por exemplo, o acesso dificultado à água potável. Logo, as enfermidades relativas à saúde primária são, ali, fato comum. No asfalto, contudo, raramente ocorrem.

O modelo de Pasárgada pode, hoje, ser encontrado, com as devidas adaptações, em quase todas as grandes cidades brasileiras. Poder-se-ia, sem qualquer risco maior, denominar Pasárgada de Restinga (Porto Alegre), de Vila Nova Jaguaré (São Paulo), de Morro do Papagaio (Belo Horizonte) e de Vila Zumbi (Curitiba). Os nomes variam. As reproduções sociais, de outra banda, se mantêm.

Importante afirmar, também, que, paradoxalmente, o direito de Pasárgada é, para os que vivem no direito oficial, um direito dos "outros". Evidente, assim, a existência de dois sistemas jurídicos que não se comunicam. Essa incomunicabilidade foi a base, durante décadas, da manutenção da ordem social no Rio de Janeiro.

Como se verifica a partir do exemplo de João Hélio, a heteropoiese do direito oficial em relação à "lei do asfalto" é uma realidade falida. A questão, no Brasil, se põe da seguinte maneira: e quando a "lei do asfalto" passa a se comunicar com o direito de Pasárgada? O que fazer? Tratar como um "outro" ou como parte de um sistema social que se auto-reproduz a partir de suas próprias referências?

A proposta é, com base na teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, permitir uma nova forma de observação desse fenômeno. A necessária comunicação entre os subsistemas sociais possibilita respostas diferentes em uma sociedade altamente diferenciada, periférica e de terceiro mundo (Brasil).

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3. A Autopoiese do Direito

Como um subsistema funcional da sociedade11, o Direito também é compreendido como um sistema autopoiético12. Logo, a autopoiese do sistema jurídico é uma continuação da autopoiese da sociedade. No entanto, é necessário que o sistema jurídico demarque sua própria autopoiesis a partir da distinção entre sua unidade e o entorno13, formando sua diferenciação funcional. Ele deve ser capaz de traçar seus limites, visto que somente como sistema vai adquirir sentido, uma vez que o entorno é pura complexidade.

Nesse sentido, Teubner14 defende que um subsistema funcionalmente diferenciado, ou em suas palavras, um sistema de segunda ordem, somente pode-se desenvolver quando produz seus próprios elementos por si mesmo e de forma exclusiva. Mediante a repetição de seu elemento básico -a decisão- o Direito pode produzir diferença e (re)iniciar sua própria autopoiesis. É o próprio Direito que define suas premissas de validade por intermédio de uma norma jurídica15 e das decisões judiciais16. Tal é o início do movimento autopoiético do sistema jurídico que se descortina em sua auto-referencialidade17.

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A auto-referência não se confunde com sua se...

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