Homoafetividade sob a ótica do direito no Brasil - Núm. 14-1, Enero 2014 - Criterio Jurídico - Libros y Revistas - VLEX 594122834

Homoafetividade sob a ótica do direito no Brasil

AutorJosé Edvaldo Albuquerque de Lima
Páginas45-73

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1. Considerações iniciais

A homoafetividade é amplamente discutida nos dias atuais. Faz-se presente em eventos acadêmicos, redes sociais, âmbito jurídico e nas mais corriqueiras conversas. A polêmica se notabiliza porque os alicerces do paradigma da família heterossexual vêm sofrendo abalos diuturnos, provocando reflexões e mudanças no tecido social. O Direito, na esteira desta realidade, passa por revisões e transformações. O presente trabalho discorrerá sobre o tema na tentativa de elucidar a evolução das uniões extramatrimoniais e o preconceito à luz do Direito, enfocando especificamente a união homoafetiva.

Sabe-se que os pressupostos éticos e morais de uma sociedade não se modificam abruptamente. Novas práticas se inscrevem, alterações vão ocorrendo, coletivizando-se, instituindo, assim, a quebra do status quo. O casamento tradicional é um exemplo disso. Ainda que culturalmente hegemônico, vem dividindo espaço na sociedade brasileira do século
XXI. As uniões desvinculadas de aparatos burocráticos e, muitas vezes, dogmáticos, são crescentes. Nesta realidade, inscrevem-se as relações que envolvem pessoas do mesmo sexo.

Esse tipo de união constitui um fato social. A Sociologia Jurídica brasileira, ciente desta realidade, levanta questões que estão longe de serem respondidas plausivelmente. A interdisciplinaridade entre as ciências não se engendra. Assimetrias são visíveis entre as ciências médicas e psicológicas ?que retiraram a homossexualidade da esfera patológica?, e a ciência jurídica, que trata a situação com o rigor dos tempos pretéritos.

Tais uniões envolvem, assim como a maioria dos casamentos tradicionais, anseios de constituir uma família repleta de reciprocidades regidas por amor, respeito, harmonia e construção patrimonial. Assim, reflete-se sobre a evolução da união homoafetiva para uma trajetória destituída de preconceitos advindos de uma cultura falocrática, em que sejam elencados todos os direitos inerentes à união estável, por exemplo, a partilha de bens e sucessão patrimonial em casos de rompimento de vínculos ou falecimento.

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No caso dos casais do mesmo sexo, essa sucessão não protegida e termina beneficiando, muitas vezes, familiares distantes que desprezaram a pessoa falecida devido à sua orientação sexual, mas que, após a morte, recorrem aos bens adquiridos no decorrer da união, sem respeitar o companheiro (a) do homossexual falecido, que por justiça é quem tem direito à meação, pois foi quem, de uma maneira o de outra, contribuiu para o aumento do patrimônio. Como o Brasil não possui lei ordinária que proteja a sucessão entre casais do mesmo sexo que não possuem filhos, cabe aos parentes próximos do falecido herdarem a parte patrimonial, deixando o companheiro sobrevivente em total prejuízo. Por conta dessa ausência, a adoção, além de um ato de amor, tem sido a saída para muitos casais homossexuais protegerem o quinhão do seu companheiro, uma vez que, em caso de morte, a parte do falecido irá para o filho menor que ficará sob a guarda e administração do homossexual sobrevivente.

Não deixa de ser uma maneira inteligente para proteger aquele ou aquela que dedicou sua vida ao lado do seu amado ou amado, contra a sanha egoísta e oportunista daquele familiar que lhe virou as costas quando descobriu a preferência sexual do seu familiar. Assim, na ausência de parentes, o espólio é agregado aos bens do Estado, ignorando completamente a relação compartilhada pelo casal.

Este trabalho visa montar um histórico acerca dos avanços relacionados à união homoafetiva, elencando aspectos culturais e avanços sociais, mas, sobretudo, os progressos jurídicos, ainda em processo. Diante desse panorama, o presente trabalho objetiva refletir sobre esta realidade, fazendo valer os direitos garantidos a todo indivíduo independentemente da orientação sexual. Diz o artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988 que, sem distinção de qualquer natureza, todos são iguais perante a lei. Este é um direito inviolável.

2. Considerações sobre a família brasileira
2.1. História do conceito de familia

O modelo de família patriarcal, nuclear ?pais e filhos, sem agregados?, patrimonializada, de casamento heterossexual indissolúvel consolidou-se

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no Brasil, acompanhando o contexto da Europa ocidental no qual a burguesia se instituía no topo da hierarquia social, tecendo e coletivizando sua visão de mundo. De acordo com Del Priore (2001: 36), “o vestido, o buquê e a valorização da castidade feminina só chegaram ao século XIX com o crescimento do modo de vida e dos valores burgueses”.

Sabe-se que a finalidade de regular a família sempre teve interesses econômicos de proteger a permanência dos bens para os herdeiros ou até mesmo agregar patrimônios, geração de filhos, em especial filhos homens, para que sucedessem os pais nos negócios. Assim, passou-se a estimular os casamentos e a geração da prole incessantemente, seja no discurso religioso, nos meios de comunicação, na literatura ou nas relações interpessoais e entre grupos. Quem não se enquadrasse no padrão, sofria sanções, como as críticas ostensivas, os afastamentos e a negação da visibilidade, sendo relegado a uma vida de ostracismo social. As uniões que não obedecessem ao modelo ideal burguês não entravam na classificação de família, sendo contundentemente marginalizadas, apesar de corriqueiras.

A primeira Constituição Brasileira, outorgada pelo imperador Dom Pedro I em 1924, não menciona casamento ou família. Já a Carta Constitucional de 1891, a segunda do país, que inaugura o período republicano, apenas se refere ao casamento civil. No Código Civil de 1916, o conceito de família atende a princípios pragmáticos: ela deve ser hierarquizada e voltada à procriação, construto de mão de obra e edificação de patrimônio (Venosa 2004).

No texto da Carta de 1934, período em que Getúlio Vargas era presidente do Brasil discorre-se de forma mais detalhada e específica, sendo a primeira a dedicar um capítulo especial para a família, estabelecendo em quatro artigos o casamento indissolúvel, sendo eles artigos 144, 145, 146 e 147. A partir desta constituição que as demais passaram a dedicar capítulos à família e trata-la em separado, conferindo-lhe maior importância e significado (Venosa 2004: 204).

Nos demais textos constitucionais, esse princípio foi mantido. A única forma respaldada por lei para se constituir uma família era o casamento.

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Todavia, a Lei 883 de 1949 permitiu que se reconhecesse o filho nascido fora no casamento legal.

Já a Lei 4121 de 1962 compreende a mulher como colaboradora da sociedade conjugal (Venosa 2004). Isso porque a mulher, cada vez mais, ampliava seus passos pelo espaço público, conquistando o mercado de trabalho e sendo uma consumidora ativa, com renda própria.

Em 1977, momento de Regime Militar (1964-1985) no país, a Lei 6515, Lei do Divórcio, entrou em vigor, permitindo a dissolução do casamento. Decisão que mostrava a laicização do Estado, constituída oficialmente desde 1891, ao superar os valores religiosos introjetados na família brasileira.

Numa análise retrospectiva, é possível diagnosticar os avanços que foram se instituindo ao longo dos anos em se tratando de família. A completa omissão ou tenacidades estão sendo superadas. Em se tratando de Constituição, apenas a atual, promulgada em 1988, se direciona à família de forma mais abrangente. O termo família legítima possui função didática. Uma nova concepção se acentua na esfera dos costumes e do Direito.

2.2. A família na Constituição de 1988

Na atual Carta Constitucional de 1988, a família continua sendo base da sociedade, com proteção efetiva do Estado. O que mudou foi à visão do casamento como único meio de se constituir a família legítima. O laço extramatrimonial entre homem e mulher, outrora, era alijado do conceito de família. Hoje, ampara-se legalmente, denominado de União Estável. Nas palavras de Fachin (2001: 59):

Após a Constituição Federal de 1988 (marco fundamental do Direito de família), a família brasileira sofreu modificações consideráveis. O legislador constituinte introduziu no campo do Direito de Família o direito à igualdade entre homem e mulher. A união estável foi reconhecida como família legítima, o legislador proporcionou a oportunidade de muitas famílias já constituídas às margens do Direito merecerem respeito antes admitido apenas ao casamento e também

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equiparando seus direitos. O casamento passou a ser algo dissociado do legítimo, a legitimidade da família não se relaciona mais com a união oficial e sim com a constituição de uma vida familiar independente de ser oficializada pelo casamento ou não, a afetividade ganhou mais peso. A demanda da realidade prática promoveu a necessidade de reformar o Direito da Família. A realização afetiva e social foi priorizada em detrimento de uma visão conservadora, dentro do modelo corrente no século XIX. De acordo com Fachin (2001: 58): A atual família dentro dos moldes reais existentes na sociedade é mais liberal e justa, tem um conceito diferenciado do conceito tradicional histórico, pois se apresenta de inúmeras formas, com inúmeras variações que a lei deve levar em conta quando tenta regulamentá-la e protegê-la. O objetivo destas uniões não...

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